— Eu tenho dois filhos... O meu mais velho, chamei de Henrique e a minha mais nova, chamei de Alice. — Joana dizia, orgulhosa.

Andava por todos os lados, sempre se gabando da bonita família que constituíra com Joaquim, deixando quem a escutava com um sentimento misto de inveja e incômodo. Assim que alguém reclamava, ela dizia, com o mesmo atrevimento de quem a interrompia: 

— Incompetência sua não ter feito o mesmo! Bem se vê que tempo não lhe faltou...

— Escuto todos os dias sobre essa sua família incrível, mas algo difícil é vê-los por aqui. O que há? — Pela primeira vez, escutava essas palavras da recém-chegada Lira, ainda jovem demais para saber o quão estúpida Joana poderia ser.

— Como ousa? — Joana perguntava, indignada.

— Eu lhe pergunto o mesmo. Como ousa se vangloriar por ter uma família grande e feliz que nem mesmo a visita, diante de tantas outras pessoas sem família? — Lira perguntava.

Momento após refletir, sabendo muito bem que não teria tantos argumentos para lidar com os dizeres da colega, Joana apenas falava:

— Fruto de amor! Você jamais saberia... Espere e verá! Logo eles estarão de volta da viagem para visitar os meus sogros.

— Por que não saberia? Eu já vivi um grande amor...

— É jovem demais! — Joana gritava.

— É claro que não! — Lira rebatia.

— Audaciosa...

— Amarga... 

E assim eram os dias. Elas apenas se afastavam depois de uma discussão tímida e seguiam seus caminhos para, logo mais, atritarem novamente. As outras moças que as acompanhavam viam-se enfadadas com tanta discussão inútil. Também questionavam como Joana – uma mulher madura com mais de cinquenta anos – podia suportar as agulhadas atrevidas de Lira, que sempre tinha uma boa resposta para aquilo que ninguém perguntou. Nos murmúrios que ecoavam pelos corredores, era possível ouvir frases como: “Se fosse comigo, aquela jovem descobriria o seu lugar em instantes!”. 

Apenas uma, em meio a tantas outras, descobriu que Lira tinha a aparência de um pequeno animal facilmente domesticado, mas seu temperamento era como o de uma leoa dominante em plena caça, dificilmente domada – e esta era justamente aquela que todas as outras criticavam: Joana. 

Dia e noite, a juventude duelava com a experiência, justamente como uma disputa de territórios, apenas por um pequeno espaço na linha de frente da razão, sem ceder ao cansaço, muito menos ao apelo de terceiros. 

— Joana? — Dessa vez Lira dava início a conversa.

— Hum...

— Como é seu marido? — Perguntou.

— Um verdadeiro cavalheiro! Forte, protetor e muito inteligente, sempre fez de tudo para educar nossos filhos. — Joana respondia animada, como quem acaba de receber uma carta do inimigo pedindo por trégua. 

— E quantos anos seus filhos têm?

— São jovens. O mais velho tem apenas doze anos, e a mais nova tem oito.

— E seu marido?

— Ele é dois anos mais velho que eu. Tem cinquenta e sete...

— É? Como é possível? — Sarcástica, tocando o ponto que desejava, Lira perguntava com uma expressão satisfeita tomando conta do seu rosto.

— O quê?

— Que um casal tão velho tenha dois filhos tão pequenos, ainda na infância? Que piada... Conte mentiras mais plausíveis!

— Falsa!

— Mentirosa!

— Metida!

— Arrogante!

A troca de “carinhos” continuava quase até a hora do jantar. Joana sabia que, apesar de tantas tentativas anteriores de outras que se diziam suas amigas, Lira era a primeira e única que lhe contrariava e, agora que estava ciente do que podia fazer para afetá-la, continuaria com aquilo até o fim dos tempos. Aquelas poucas semanas de convivência fizeram com que Joana entendesse que precisava pôr um fim naquela história, ainda que, depois de tudo, tivesse se afeiçoado à jovem Lira. 

— Tão audaciosa... Sempre me questionando e aproveitando as pequenas oportunidades para me pegar desprevenida e poder rir de mim... — Joana falava sozinha, enquanto retirava as roupas brancas de dentro da bacia. — Ela não perde por esperar!

— Quem? — Lira perguntou, entrando na sala pela porta logo atrás de Joana.

— De novo! Você não vai me pegar dessa vez, pois a minha família vem me ver.

— Sério? Então vou poder conhecê-los? Já era hora. Quando chegam?

— Não é da sua conta!

Ela saiu batendo a porta. Estava confusa e com a cabeça fervendo em pensamentos tão negativos – tanto que precisou ser levada à enfermaria para uma medicação leve, como costumavam dizer. 

— Eu sou tão jovem... Fiz trinta há pouco... E já me descontrolo assim. Alguma indicação para a minha idade, doutora?

— Sim, Joana. Apenas um bom descanso. — A médica dizia, na maior parte das vezes em que Joana ia parar na enfermaria.

— Não! Hoje meu marido e meus filhos estão vindo me visitar, então não posso dormir!

— Ah, interessante. Vai ser como da última vez? Eles trouxeram algo para você, não é?

— Bolo de fubá como o que minha mãe preparava. Apenas a mãe do meu marido sabe a receita e ele prometeu que traria, assim que voltasse para casa com as crianças.

— Que bom! Aproveite! — A médica dizia, enquanto escrevia na ficha de Joana.

Ela então escorou-se pelo corredor até chegar ao seu quarto, ajudada por uma vizinha que a estimava e, finalmente, descansou a cabeça no travesseiro que a acolhia gentilmente todas as noites. A cabeça, geralmente pesada e repleta de pensamentos, agora estava leve e calma como um lago de água cristalina e, por isso, o sono não demorou a visitá-la, apesar da sua objeção persistente e de uma dor latejante que sentia no braço desde que saíra da enfermaria. 

Em seu sonho tão lindo e diferente do que costumava ter, ela encontrava os filhos e o marido. Todos estavam felizes, sentados embaixo de uma árvore grande e fazendo um piquenique. Bolo de fubá era a estrela da toalha azul em que todos repousavam, seguido pelos pratos favoritos de Henrique e Alice, que eram os sanduíches de queijo de búfala que Joana preparava. Para o marido, o rotineiro café preto fortificado com o conteúdo da pequena garrafa de metal que ele carregava para todos os lados.

Ao acordar, já no outro dia e logo pela manhã, Joana buscou pela mesinha que ficava ao lado da cama. Sobre ela, um pratinho envolto por papel alumínio protegia a generosa fatia de bolo de fubá que ela havia guardado depois do lanche. Lira olhava para ela, sentada na cama ao seu lado, com um pequeno sorriso no rosto.

— O que foi? — Joana perguntou. 

— Não é nada. Fiquei feliz que pôde ver sua família.

— Eu não disse?

— Bom... Você não permitiu que eu os visse, por isso vou ter que continuar duvidando de você, ainda que tenha esse bolo em suas mãos.

— Atrevida como sempre! Não se cansa? — Joana perguntou.

— Não. O tempo passa mais rápido quando nos divertimos com amigos.

Apenas uma informação não precisava ser dita para aquela pessoa tão desesperada. Lira entendeu, já que a sua situação era menos agressiva que a de Joana, a necessidade da companheira de quarto, que nem sabia que aquela instituição não era a casa que compartilhava com o marido e os dois filhos, que já não existiam há anos. O pedaço de bolo da cafeteria do internato não era nada fofinho e saboroso como o da mãe de Joana; seu marido e seus filhos, mortos no acidente de trem que a família sofreu há vinte anos, nunca voltariam para vê-la; ninguém da família se importava realmente com o seu estado; mas era delicioso e reconfortante sonhar. Acalmava o coração, o corpo e a mente, e só uma pessoa como Lira sabia como Joana ainda precisava acreditar.

 

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