11 de setembro de 2025

 

Entenda como a polarização entre o bem e o mal pode afetar a criação e o desenvolvimento dos personagens da sua história. 

 

Olá, leitores!

Vocês já ouviram falar sobre maniqueísmo? Antes de seguirmos, sugiro retomar o artigo Como criar bons personagens? (clique aqui) para complementar a leitura.

Desde os primeiros estudos literários, sabemos que o conflito é um dos motores da narrativa. Muitos teóricos afirmam que, sem conflito, não há história. Afinal, ele é a tensão gerada pelo choque de forças opostas — desejos, necessidades, valores, personagens ou até o indivíduo contra si mesmo. É o conflito que cria perguntas capazes de manter o leitor interessado: O que vai acontecer? Será que o personagem vai superar esse obstáculo?

 

O QUE É MANIQUEÍSMO?

A origem do termo nos leva a uma antiga religião fundada no século III d.C. por Mani, na Pérsia. Essa doutrina sincrética, pois combina elementos do zoroastrismo, budismo, gnosticismo e cristianismo, via o universo dividido entre duas forças eternas e irreconciliáveis: a luz (o bem) e as trevas (o mal). Embora a religião tenha perdido força ao longo da história, o conceito de oposição absoluta permaneceu como metáfora cultural e filosófica.

A literatura traz, através do poderoso recurso narrativo da filosofia maniqueísta, essa visão dualista do mundo. A oposição absoluta entre polos — bem versus mal, herói versus vilão. Não se trata de adesão a uma doutrina religiosa, mas do uso simbólico da estrutura para moldar personagens, enredos e até gêneros inteiros.

Representação do mundo dividido entre bem e mal. Imagem gerada por I.A.

 

O MANIQUEÍSMO COMO ESTRUTURA NARRATIVA

O maniqueísmo é uma das formas mais diretas de construir tensão narrativa. Ao criar personagens claramente bons ou maus, o escritor guia a empatia do leitor e estrutura o enredo de forma clara. Esse modelo aparece tanto em obras clássicas quanto em narrativas populares.

Exemplos:

  • Na epopeia clássica, como em A Ilíada ou A Odisseia, os heróis (Aquiles, Ulisses) se colocam contra forças hostis, humanas ou divinas.
  • Na literatura medieval, a luta entre cristãos e infiéis, ou cavaleiros e monstros, carregava forte caráter moral e religioso.
  • Nos romances do século XIX, escritores como Charles Dickens representavam vilões gananciosos e corruptos contra protagonistas virtuosos e pobres.
     

MANIQUEÍSMO NA LITERATURA INFANTIL E JUVENIL (HERÓIS X VILÕES)

Nas histórias infantis, o maniqueísmo cumpre papel pedagógico. Vilões como a madrasta da Branca de Neve ou a Rainha de Copas de Alice no País das Maravilhas são exemplos claros de figuras que ensinam, pelo contraste, os valores positivos aos jovens leitores.

No gênero young adult e na fantasia contemporânea, ainda encontramos essa estrutura. Harry Potter, por exemplo, é marcado pela oposição entre o protagonista e Voldemort, arquétipo do mal absoluto.

É claro que normalmente pensamos no maniqueísmo quando há relação entre heróis e vilões. Um lado é bom, perfeito, puro e imaculado, enquanto o outro lado é mau, perverso e sombrio. Essa divisão rígida entre puro e impuro, verdadeiro e falso, faz com que os personagens ali descritos sejam rasos, sem complexidade alguma. Por essa razão se fez necessário levar o maniqueísmo dentro do próprio indivíduo.

 

O MANIQUEÍSMO DENTRO DE UM ÚNICO INDIVÍDUO

Ao escrever sobre pessoas, é necessário compreender a sua profundidade. Na narrativa, revelamos detalhes e traços de personalidade que são convenientes ao rumo da história. Muitos deles ficam implícitos ou, dependendo da relevância do personagem, sequer aparecem.

A reflexão sobre a profundidade dos personagens nos mostra como o maniqueísmo está mais presente na criação literária do que imaginamos.

Observamos com muita frequência, tanto em personagens fictícios quanto em nós ou em pessoas do nosso convívio, a divisão moral que nos habita. É constante sentirmos a “luta” entre nossas forças internas, ou “o bem e o mal”, “o certo e o errado”. A representação dessas emoções não pode ser falha e é uma característica importante que dá profundidade ao personagem.

Aqui vão alguns exemplos do maniqueísmo na criação literária:

  • Um personagem que luta entre a honestidade absoluta e a tentação de enriquecer com corrupção;
  • A clássica representação metafórica do anjo e do demônio no ombro, que é, na verdade, um recurso maniqueísta para representar dilemas internos;
  • O personagem que reconhece o “bem” (ideal, dever, justiça), mas sente atração pelo “mal” (prazer, vingança, ódio), o que gera uma narrativa de queda ou redenção, muito comum na literatura clássica e religiosa;
  • Ou, ainda, o maniqueísmo interno literal, presente em personagens criados para representar duas naturezas opostas, como em O Médico e o Monstro (Robert Louis Stevenson), em que Dr. Jekyll encarna a moralidade e Mr. Hyde o instinto selvagem.

Portanto, faça com que seu personagem seja tão multifacetado quanto você. Somos complexos, temos qualidades, defeitos e bastante profundidade psicológica. Conflitos, sejam eles internos ou externos, tornam tanto o personagem quanto a história ricos e interessantes.

 

O LADO POSITIVO DO MANIQUEÍSMO

Como ponto positivo, o conflito interno entre polos dos personagens pode oferecer mais clareza ao leitor. O dilema ao qual o personagem é exposto é rapidamente compreendido, pois “bem versus mal” é um esquema universal.
A luta interna gera tensão, a sensação trivial de estar em guerra consigo mesmo. Por fim, a divisão entre o certo e o errado força o personagem a escolher um caminho, originando histórias de queda, redenção ou superação.
Todos esses detalhes sobre como o maniqueísmo interno se manifesta e beneficia a história refletem na visão empática do leitor. Ou seja: o leitor se vê refletido nas vivências do personagem e acompanha sua jornada com interesse.

 

A CRÍTICA AO MANIQUEÍSMO

Por outro lado, quando usado de forma rígida, pode produzir personagens artificiais e histórias previsíveis. Se o leitor já sabe que o bem vencerá no final, perde-se a surpresa que torna a leitura envolvente.

Autores como Dostoiévski, Machado de Assis e Virginia Woolf preferiram explorar zonas cinzentas, dilemas éticos, ambiguidade moral e contradições humanas profundas de personagens cujas motivações não se reduzem ao bem ou ao mal. A literatura moderna e contemporânea valoriza o antagonista complexo e o herói falho, mais próximos da realidade.

Em resumo, equilibrar virtudes e falhas é o que garante personagens convincentes e narrativas memoráveis que fortalecem a sua profunda conexão com o leitor.

 

MANIQUEÍSMO E CULTURA DE MASSA

Apesar das críticas, o maniqueísmo permanece forte na cultura popular. Histórias em quadrinhos, cinema e literatura de entretenimento recorrem constantemente à oposição entre heróis e vilões. O apelo universal dessa estrutura mostra que a luta entre luz e trevas ainda mobiliza nossa imaginação coletiva.

Entretanto, a Marvel é um grande exemplo de como o maniqueísmo rígido é um risco e evidencia a necessidade de evolução narrativa.

No passado (entre 1940-1960) os personagens eram muito marcados pelo modelo maniqueísta clássico, com heróis virtuosos contra vilões essencialmente maus — o que funcionava bem para o contexto após a segunda guerra mundial.

Tal característica foi perdida a partir de 1960, quando a Marvel se tornou pioneira em humanizar seus personagens, quebrar o maniqueísmo e dar-lhes contradições. Por exemplo, Homem-Aranha lidando com culpa, responsabilidade e dificuldades financeiras; X-Men refletindo preconceito e intolerância; e Hulk sendo ao mesmo tempo herói e ameaça.

A partir dos anos 2000, com as adaptações cinematográficas, se mantivessem apenas heróis perfeitos, eles pareceriam rígidos, inverossímeis e pouco relacionáveis. A solução foi trazer o maniqueísmo para dentro dos personagens, como por exemplo com o Tony Stark (Homem de Ferro), que luta entre arrogância e altruísmo; ou o Capitão América, que enfrenta dilemas morais sobre obediência versus liberdade; ou Thanos que, embora vilão, é construído com motivações “compreensíveis”, evitando ser um mal absoluto sem justificativa.

O público moderno busca complexidade e identificação. Quando a Marvel conseguiu identificar isso e trouxe nuances, falhas e conflitos internos que refletiam dilemas humanos reais sobre poder, responsabilidade, amor, perda e escolha, conseguiu aproximar os heróis das pessoas comuns.

 

CONCLUSÃO

O maniqueísmo é um recurso poderoso, mas exige cuidado. Ele organiza conflitos com clareza e provoca forte impacto emocional, mas pode limitar a narrativa se usado de forma rígida.

Entre o preto e o branco da literatura, há infinitos tons de cinza. É nesse espaço que surgem os personagens mais humanos, as histórias mais ricas e as narrativas que permanecem na memória do leitor.